NOTÍCIA

Liberdade e a pandemia por Ricardo de Oliveira Rodrigues – presidente da Comissão de Igualdade Racial da OAB Niterói

O povo africano que sofreu a diáspora foi escravizado e construiu este país e as Américas, foi liberto no Brasil, última nação ocidental a decretar a liberdade, em 1888, quando as pessoas negras deixaram de ser objetos de direito, se tornando sujeitos de direito. Há 132 anos o povo negro brasileiro espera a compensação, porque, ao contrário de outros ativistas, entendo que a reparação (termo usado pela corrente majoritária) será impossível.


Milhões de pessoas foram libertadas sem lar, sem dinheiro e muitos sem família, sem educação formal da época, muitos que estavam no interior tendo de fazer o êxodo para os grandes centros em busca de um modo de sustento ou na tentativa de esquecer o que viveram naqueles locais. E sem nenhum tipo de política habitacional, foram se instalando onde podiam, geralmente em terras devolutas e/ou sem valor para os seus proprietários, encostas, perto de rios, locais abandonados.


Depois, com a chegada dos europeus que não conseguiram se adaptar ao trabalho que era realizado pelos ex-escravos, bem como dos nordestinos fugindo da seca dos seus estados de origem, construíram as comunidades que hoje conhecemos, cheias de mazelas, miséria e violência.


Também não foram criadas políticas de emprego para os libertos, que tinham como diferença do povo escravizador a cor da pele, o que continuaria a estigmatizá-los. Eles foram vivendo como podiam, com pequenos trabalhos, enquanto as mulheres negras foram recrutadas para o trabalho doméstico, profissão que perdura por 132 anos, e a reforma trabalhista atual quase extinguiu.


Numa tentativa de eugenia, os italianos foram atraídos para o Brasil, em 1870, estimulados pelo Império, o que se intensificou de 1880 a 1930, com os problemas ocorridos pela unificação da Itália e a subvenção que ajudava nas passagens, bem como moradia, maquinário, e outras benesses.

Resumidamente, tentamos retratar a falta de oportunidades para o povo negro que vivia no Brasil. Tantas atrocidades foram cometidas nos quase 400 anos de escravidão.

A falta de pagamento de salários justos e dignos, bem como de aposentadoria, temas debatidos nas reformas trabalhista e previdenciária que foram implementadas recentemente no país, nos remetem mais uma vez à exploração dos negros, que trabalharam, construíram essa nação e não foram respeitados.

Para essa parcela da população até hoje excluída defendo políticas públicas afirmativas, em reparação, ou melhor, em tentativa de compensar toda a exploração sofrida por seus antepassados e que desaguou no estado em que se encontram até o presente. E, pedindo licença aos que pensam diferente, essa dívida não está prescrita.

Nessa esteira o Conselho Federal da OAB instalou a Comissão da Verdade da Escravidão Negra no Brasil, que, junto com a já existente Comissão de Igualdade Racial, tentará empreender esforços no sentido de resgatar a História Negra no Brasil, não a história contada pelo colonizador, que tenta inferiorizar os diferentes, e sim o que ocorreu sob a ótica do escravizado: as revoltas, as insurreições.

Não temos só Zumbi, João Cândido, Luiz Gama e os Irmãos Rebouças. Temos também Zacimba Gaba, no Norte do Espirito Santo, e Manuel Congo, em Vassouras, entre muitos outros que lutaram para pôr fim a esse crime contra a humanidade que foi a escravidão negra, e não entraram na narrativa do colonizador.

A maioria dos negros sobrevive de trabalhos informais, herança da falta de oportunidades por parte da sociedade dominante. E para quem não é negro e diga “Mas eu também vivo de trabalhos informais. Muitos vivem”, o fato é: quantas dessas pessoas você conhece cujos ancestrais foram trazidos para o Brasil amarrados, em porões de navios fétidos, para aqui serem escravizados sob chicotadas?

Como não identificar o racismo estrutural? Como aderir à tese da meritocracia? Mérito é quem merece, “cracia”, do grego, é poder; meritocracia é “poder a quem merece”. Mas, como uma pessoa periférica, sem oportunidade, pode competir com outra que teve todo o preparo? Isso é meritocracia ou será naturalização do racismo estrutural?

Quando não damos oportunidades iguais às pessoas de se desenvolverem, privilegiando um grupo e oprimindo o outro, reforçamos esse sistema, que gera cada vez mais violência e repressão. Gera fome, falta de empregos, de escolas públicas de qualidade, de saúde, de saneamento básico.

A igualdade elencada no art. 5º da Carta Cidadã de 1988 ainda é um sonho que as pessoas republicanas perseguem.

Estamos passando por um momento avassalador com essa pandemia da Covid-19. Talvez seja o momento de reflexão para aplicarmos não um paliativo de cesta básica, bolsa-família, auxilio emergencial – que realmente ajudam muita gente, matam a fome -, mas sim de universalizarmos o acesso aos benefícios sociais, com justiça para todos os brasileiros, independente de classe social ou cor da pele.

Então poderemos cantar, e passada a pandemia a plenos pulmões: “Já raiou a liberdade no horizonte do Brasil!”.